A artista e criadora do primeiro bloco de drag queens de São Paulo reflete sobre longevidade, coragem e a importância de transformar o carnaval em espaço de resistência e afeto.
Ícone de representatividade e alegria, Mama Darling é a prova viva de que o tempo nunca é obstáculo para quem decide recomeçar. Fundadora do MinhoQueens, o primeiro bloco de drag queens de São Paulo, ela reinventou a própria vida depois dos 50 anos, e transformou o Minhocão em palco de resistência, cores e liberdade.
Antes de se tornar símbolo do carnaval paulistano e palestrante sobre diversidade em empresas, Mama construiu uma sólida carreira no setor aéreo, como Fernando. Hoje, leva sua história a palcos, avenidas e auditórios, inspirando pessoas a romperem barreiras e acreditarem na potência de serem quem são.
Nesta entrevista, concedida com exclusividade, Mama Darling fala sobre o recomeço, a força da arte drag, os desafios de manter vivo um movimento cultural e o que ainda sonha realizar.
Você começou sua trajetória drag depois dos 50 anos, em uma fase da vida em que muitas pessoas acreditam que já não é hora de recomeçar. Qual foi o estalo que te fez romper essa barreira e o que você diria hoje para quem sente que “já passou do tempo”?
Mama Darling: Eu acredito que sou uma pessoa de muitos estalos! Os 50 anos estavam chegando e eu percebendo que a vida sempre nos reserva coisas novas que às vezes a gente não vê ou vê e deixa passar. Eu sempre sonhei em ser artista. Sou formado em Artes Cênicas e quando me mudei para São Paulo para tentar a carreira de ator, na necessidade de um emprego para me manter, entrei na American Airlines e me apaixonei pelo trabalho. Tranquei o ator no armário e me dediquei por 24 anos à carreira na companhia aérea.
Foi nessa virada dos 40 para os 50 que fui percebendo que sentia falta de fazer algo que não fosse a rotina do mundo corporativo, não que fosse uma rotina enfadonha, mas era uma rotina. Acho que meu aniversário de 50 anos já me indicava o caminho do carnaval: comemorei com uma grande festa em cima do Minhocão. Com música, tenda de bar, tenda de doação de ração para gatos (sou gateiro) e chamei amigos e família. Nesse mesmo ano tive a ideia do bloco, e o Minhocão seria o lugar, por isso MinhoQueens.
O bloco estreou em fevereiro de 2016, mesmo mês do meu aniversário de 51 anos. E ali nascia a Mama Darling e o primeiro bloco de drag queens da cidade. Foi aí o recomeço da vida do artista que eu tinha trancado no armário.
E para quem pensa que “já passou do tempo” eu digo que não existe idade para recomeçar. Existe sim a coragem de se permitir viver algo novo. Eu me sinto prova viva de que um salto alto pode chegar junto com o cabelo branco, e que a borboleta pode nascer em qualquer fase da vida. Digamos que recomeçar é um ato de amor-próprio, e amor-próprio não tem data de validade!
Sua carreira anterior foi no setor aéreo, em uma multinacional. Como essa vivência corporativa influenciou sua postura artística e, ao contrário, como a Mama Darling transformou sua forma de enxergar o mundo dos negócios e das pessoas?
Mama Darling: Minha trajetória no setor aéreo, dentro de uma multinacional, me deu uma base sólida em disciplina, organização, e o mais importante, a arte do relacionamento humano. Trabalhei em vários setores da aérea e na maior parte do tempo com pessoas. Aprendi que nenhum negócio decola sozinho, é preciso muito trabalho de equipe, de comunicação e principalmente respeito à diversidade.
Essa conexão com pessoas me ajudou a construir a postura profissional que levo até hoje para o palco e para a vida artística. E quando a Mama nasceu, acho que comecei a enxergar que por trás de cada cargo, cada terno, cada uniforme, cada planilha, existe um ser humano que precisa ser visto, acolhido e celebrado.
Com o universo drag eu aprendi a valorizar a autenticidade, a vulnerabilidade e a potência de sermos quem somos. Hoje acredito que cheguei num ponto de equilíbrio: o Fernando com a estrutura, estratégia, olhar corporativo, enquanto a Mama entra com a emoção, a cor-de-rosa e as conexões humanas verdadeiras. Descobri que negócios e arte não são opostos, mas complementares quando a gente entra com aquela dose de humanidade e coloca o ser humano no centro de tudo.
Onde termina o Fernando e começa a Mama Darling? Há momentos em que você sente que as duas identidades se misturam de tal forma que uma ensina a outra?
Mama Darling: Delícia de pergunta, mas difícil de responder, porque no fundo não são dois seres distintos, mas sim como se fôssemos dois rios que se encontraram e seguem juntos o seu curso. Estão o tempo todo misturados.
Eu sinto que enquanto estou de Mama, o Fernando me empresta muita coisa, maturidade, vivência, e quando saio da peruca e do salto, sinto que a Mama empresta ao Fernando leveza, alegria, ousadia e liberdade. E o Fernando é eternamente grato à Mama por ela ter tirado o ator do armário.
O MinhoQueens surgiu de uma brincadeira entre amigos e se tornou um dos blocos e festas LGBTQIAPN+ mais potentes de São Paulo. O que foi mais difícil: transformar uma ideia despretensiosa em movimento cultural ou mantê-lo vivo e relevante diante de tantas mudanças sociais e políticas?
Mama Darling: Sem dúvida alguma, o mais difícil foi manter o MinhoQueens vivo e relevante. A ideia inicial foi fácil, porque tínhamos uma vontade imensa de colocar nossas cores e nossa alegria nas ruas. Havia muito amor e muita amizade envolvida, que fez com que estreássemos com muito sucesso no carnaval paulistano.
Mas fazer disso um movimento cultural que resiste ano após ano exige muito mais que glitter e música. Lutar contra a falta de apoio em alguns momentos foi muito difícil. Com muito esforço e dedicação, hoje estamos em um caminho mais consolidado, graças ao trabalho de pessoas apaixonadas pelo MinhoQueens.
Destaco aqui a atuação do meu sócio e DJ do bloco, Luís Giusti, sem ele acho até que já teríamos desistido. Ele é um profissional de muito talento e se entrega por completo para que o bloco se mantenha vivo.
Vivemos num país em que os cenários sociais e políticos mudam constantemente, e cada mudança impacta diretamente a comunidade LGBTQIAPN+. Manter o bloco na rua significa lutar por espaço, por respeito e por direitos. Não é apenas sobre carnaval, é sobre visibilidade, sobre dizer “nós estamos aqui e não vamos voltar para o armário”.
O que nos mantém firmes é justamente a força coletiva. O MinhoQueens não é só meu ou da Mama, é de todo mundo que se sente representado nele. É a plateia, são os foliões, as drags, os DJs, os amigos que carregam caixas, os parceiros que acreditam na ideia. É isso que transforma resistência em festa e que dá sentido a continuar mesmo quando o caminho parece mais difícil.
Você também atua em palestras, empresas e ambientes formais falando sobre diversidade. Qual foi a reação mais surpreendente que já recebeu ao levar a Mama para espaços onde a drag não costuma estar presente?
Mama Darling: O mais surpreendente para mim foi perceber a capacidade da drag de quebrar barreiras invisíveis. O mundo corporativo, não todo, mas em grande parte, guarda uma certa formalidade que a drag já desmonta de cara. Ver o CEO engravatado aos poucos ceder e dar risada, interagir com perguntas, até pedir uma fotinha, isso é muito interessante. É sobre a drag queen ocupar espaços onde antes não lhe era permitido.
Eu na verdade nasci no mundo corporativo, depois ocupei as boates. Fiz um caminho inverso. Agora, o que mais me surpreendeu foi um colaborador de uma empresa que, após minha palestra, me enviou um e-mail dizendo que depois de me ouvir conseguiu chegar ao trabalho no dia seguinte e sair do armário para a empresa toda. Isso me encheu de alegria e emoção.
Percebi naquele momento que minha história vai além de palestrar sobre diversidade no mundo corporativo. Ela inspira pessoas a serem quem elas são e terem a coragem de viver sua verdade.
O Carnaval sempre foi um palco de resistência. Como você enxerga o papel da Mama Darling e do MinhoQueens não apenas como entretenimento, mas como um grito político e histórico para as próximas gerações?
Mama Darling: O Carnaval sempre foi um ato político. É quando o povo ocupa as ruas. Uma festa democrática e a maior festa popular do planeta! Dentro desse contexto, a Mama e o MinhoQueens têm um papel que vai além da música e da fantasia, estamos ali mostrando que existir em liberdade já é, por si só, um gesto revolucionário.
E quando você tem uma drag 60+ conduzindo um dos maiores blocos LGBTQIA+ em São Paulo, é um recado para toda a sociedade e para as próximas gerações de que podemos ser quem somos sem ter que pedir desculpas a quem tenta nos silenciar.
Cada desfile do bloco no carnaval é um grito político contra qualquer tipo de preconceito. Essa é a nossa luta e missão. Nós celebramos hoje para que amanhã ninguém se esqueça que estivemos aqui e que resistimos. O maior legado que quero deixar é esse: mostrar que a alegria também é uma forma de luta, e que a festa pode ser uma arma poderosa de transformação social e histórica.
Com 60+, você já é referência de longevidade e representatividade na cena drag. Quando olha para frente, o que ainda falta realizar?
Mama Darling: Eu falo uma coisa: realizei sonhos que eu nem sabia que tinha. Ser uma drag que nasceu aos 51 anos de idade, fundar um bloco de carnaval que se transformou em um movimento tão potente, estar em palcos, empresas, apresentar conferências das Câmaras de Comércio e Turismo LGBT+ do Brasil e do Uruguai, ter participado de programas televisivos, foto em exposição no Museu da Diversidade Sexual, tudo isso já é maior do que eu poderia imaginar.
Mas sonhar é como combustível. Eu ainda quero ter a Casa MinhoQueens e poder oferecer oficinas, projetos sociais, espaços de acolhimento e formação para jovens LGBTQIA+. Porque não basta ocupar a rua uma vez por ano, quero que a energia do bloco reverbere o ano inteiro, transformando vidas de forma concreta.
E se aos 60 já realizei muita coisa, quero que aos 70, 80, 90 eu seja a prova viva de que sonhos não envelhecem nunca. Por mais clichê que isso possa parecer, um sonho realizado é sempre uma porta aberta para outro acontecer.
Se daqui a 50 anos alguém ler sobre a Mama Darling em um livro de história, qual você gostaria que fosse a frase registrada ao lado do seu nome?
Mama Darling: Essa é a mais difícil de todas…, mas aqui vai uma frase que me cabe:
“A alegria dela transformou vidas e com ela aprendemos que nunca é tarde para ser feliz e ser quem somos de verdade. Viva a arte drag!”
Fonte: Portal Contei