Como a literatura contemporânea aproxima os jovens da realidade

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Temas como diversidade, protagonismo feminino e perspectivas culturais e ambientais despertam o interesse desse público.

Por muito tempo, os estudantes do ensino médio tiveram contato somente com obras literárias clássicas, com temáticas que, supostamente, se tornam mais obsoletas e menos relacionáveis a cada vez que são ensinadas, resultando, muitas vezes, em uma falta de interesse pela leitura. No entanto, a literatura é uma fonte significativa de mudanças na perspectiva e no processo de aprendizagem dos alunos.

Por meio da inclusão de romances mais recentes no currículo escolar, os jovens poderão se sentir mais engajados e com vontade de ler. Os livros contemporâneos podem abordar temas como emancipação feminina, racismo, xenofobia, diferentes etnias, gêneros e orientações, além de questões ambientais e culturais, que auxiliam a abrir a mente dos alunos para diferentes panoramas, pois cada livro lido afeta a realidade de alguma forma.

Com base nessa premissa, convidamos o escritor e professor de Geografia do Sistema Gabarito, Rafael Nolli, para uma entrevista sobre a relação dos jovens com a literatura contemporânea. Nolli é autor de oito livros, entre eles Isca (poesia), Sr. Bigodes era o seu nome e Achados & perdidos – vencedor juvenil do III Prêmio Cepe Nacional de Literatura Infantil e Infantojuvenil (2021).

Gabarito – Como a literatura contemporânea contribui para uma melhor percepção da realidade pelos jovens?
Nolli – A literatura em si é um veículo que conduz o leitor à reflexão, favorecendo o acesso a novas experiências, que esse leitor talvez jamais teria em sua vida real. Esse mundo que se descortina, quando se abre um livro, possibilita a formação do indivíduo, ao colocá-lo diante de dilemas, alguns muito complexos, distantes de sua vivência; outros, muito próximos de sua realidade.
Ao fazer a imersão em uma obra contemporânea, muitas vezes o jovem encontrará problemas, dilemas, debates atuais, onde poderá ter contato com soluções éticas, democráticas e, até mesmo, autoritárias (pois o livro literário tem as suas artimanhas e estratégias para denunciar, discutir, e fazer refletir sobre os problemas do momento). Dessa forma, o leitor poderá analisar e contemporizar, criando ou aperfeiçoando o seu senso crítico. Assim, o contato com essas histórias (ficcionais ou não) amplia as suas ferramentas para o entendimento do mundo e da realidade.

Gabarito – Quais autores você destaca que despertam mais interesse dos jovens?
Nolli – A literatura, assim como as demais formas de arte, está atrelada ao mercado. Então, há grandes ondas, onde autores e estilos dominam as prateleiras das livrarias, as indicações nas redes sociais e, dessa forma, se tornam objeto de desejo dos jovens. Vimos uma grande onda de autores de fantasia, que surgiram na esteira do sucesso de Harry Potter e do Senhor dos Anéis; vimos uma grande onda de autores dedicados aos vampiros, na esteira do Crepúsculo, e assim por diante. Há jovens que se tornam fiéis leitores de determinado autor, sobretudo daquele autor que está sendo incensado pelas mídias. Porém, vejo, na maioria das vezes, jovens buscando livros sobre determinado tema (o tema em voga), independente de quem o tenha escrito. Entra aí o papel do professor, como mediador e, principalmente, como curador, buscando autores que tenham um bom texto (com qualidade literária) e que seja relevante na formação intelectual e cultural desse estudante. Percebo em sala de aula, autores como Pedro Bandeira, Ruth Rocha (para ficarmos em dois exemplos clássicos), Leo Cunha, Tino Freitas, Susana Menezes (para citar contemporâneos), que encantam leitores ao serem levados – pelo professor – para a sala de aula.

Gabarito – Você poderia fazer um paralelo tema / obra de assuntos que considere relevantes para serem abordados pela faixa etária do Ensino Médio e jovens adultos?
Nolli – Entre os alunos, é fácil perceber uma queda pelas obras que abordam assuntos ligados à sexualidade, aos temores sobre o futuro; há um apreço pelo terror, que é um nicho muito explorado nos últimos anos.

Outro assunto importante, nem sempre declarado, compreende os temores ligados às mudanças ocorridas nessa fase (final de ciclo, vestibular, sair de casa para começar uma vida própria). Há bons livros que tratam do tema de forma interessante, com qualidade literária. Sobre as dúvidas da adolescência e o início da vida adulta, posso sugerir:

O Apanhador no Campo de Centeio (J.D. Sallinger) – sobre um jovem que, ao descobrir que repetirá de ano, vive uma saga para chegar em casa antes da notícia da sua reprovação.

Ei! Tem alguém aí? (Jostein Gaarder) – sobre a chegada de um irmão e todos as mudanças advindas desse fato.

O Dia em que Troquei o Meu pai por Dois Peixinhos Dourados, Lobos Dentro da Parede e Coraline (Neil Gaiman) – Difícil indicar somente um do autor. Essas obras discutem questões familiares de forma muito profunda, com um apelo visual que atrai os jovens.

Capitães de Areia (Jorge Amado) – Aborda questões de sexualidade e, ao prender a atenção do aluno com esse gancho, pode levá-lo a refletir sobre outras questões também pertinentes, como problemas sociais, violência, abandono.

Um dia, um Rio (Leo Cunha e André Neves) e Sagatrissuinorana (João Luiz Guimarães e Nelson Cruz) – refletem sobre questões ambientais, ambos sobre os desastres nas barragens mineiras.

Gabarito – A partir de uma obra contemporânea, como ampliar o repertório desses jovens para referenciar as obras clássicas?

Nolli – A principal questão é encontrar um caminho onde obras com forte apelo geracional sejam intercaladas com obras clássicas. Os clássicos podem ser apresentados em meio a obras que ainda não ganharam tal status e que talvez nunca ganhem! É possível, com uma boa curadoria, encontrar obras contemporâneas com ganchos que levem aos clássicos, pavimentando o interesse do jovem leitor por essas leituras que, muitas vezes, parecem distantes.

Gabarito – Com tanta série, rede social, games, por que a leitura ainda resiste entre os jovens, por que ela é importante?
Nolli – A melhor resposta é mesmo um clichê! Quando surgiu a televisão, decretaram a morte do cinema. Quando surgiu a internet, a mesma história: o que será do rádio, da TV, dos livros físicos agora? E, no final das contas, todas essas mídias estão aí, convivendo, disputando público, é verdade, na maioria das vezes. Isso se dá porque cada um desses meios de comunicação tem uma forma específica de dizer as coisas, de se fazer presente na vida das pessoas. O livro sobrevive, conquistando a nova geração de leitores, porque ele tem uma forma especial, única, de apresentar o mundo para essas pessoas. Muitos preferem a TV, os games. O leitor ideal, acredito, é aquele que prefere tudo isso, encontrando um momento para cada coisa.

Gabarito – Por que você decidiu escrever também literatura infantojuvenil? Como é seu processo de escrita?
Nolli – Escrevi inicialmente dois livros de poemas, pensando no público adulto. Porém, sempre fui leitor de livros infantis e infantojuvenis, tal como de quadrinhos. Logo, foi um caminho natural escrever para crianças e adolescentes. O processo de escrita é bem simples. Tudo começa com uma ideia, que vai para o papel rapidamente. O grande segredo está em conseguir dedicar muito tempo a esse texto, escrevendo, reescrevendo, ampliando, cortando. No meu caso, o livro é feito durante um longo prazo, mesmo que o texto, com início, meio e fim, seja escrito em um ou dois dias, o tempo de trabalho costuma durar meses, em alguns casos, anos.

Gabarito – Como você, escritor, dialoga com esse público?
Nolli – Uma das grandes vantagens de ser professor e escritor é estar sempre no meio de jovens, vendo de perto os seus interesses e demandas. Saber o que assistem, o que ouvem de música, o que consomem de arte, é fundamental para se estabelecer esse diálogo. Por exemplo, dois dos meus livros nasceram de experiências que vivi em sala de aula. Gertrude Sabe Tudo é a história de uma menina com altas habilidades que vai enfrentar uma série de problemas em sua vida (inclusive, e sobretudo, na escola). Ao Pé da Letra é sobre uma menina autista e sua aventura no ambiente escolar. Importante dizer que ambas são obras de ficção, literárias, que, em muitos casos, servem como material de apoio para tratar de assuntos variados. Mas o meu foco sempre é literário. É nesse ponto que diálogo com eles, falando do que ocorre em seu entorno, buscando trazer para o texto referências que sejam compreensíveis para eles, sem abrir mão de referências mais complexas.