Remake de Vale Tudo e o efeito Mandela: como a memória influencia as críticas à novela

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Psicóloga faz alerta sobre memórias falsas que podem causar efeito manada nas redes sociais.

No final de fevereiro deste ano, a TV Globo divulgou o primeiro teaser do remake de Vale Tudo, um dos maiores clássicos da teledramaturgia brasileira. A nova versão da novela, que foi ao ar originalmente em 1988, gerou um intenso debate nas redes sociais, com elogios, críticas e muitas especulações. Entre os principais tópicos discutidos pelo público, destacam-se as expectativas sobre a atuação de Bella Campos no papel da vilã Maria de Fátima – personagem interpretada por Glória Pires na versão original – e a necessidade de refazer uma obra considerada consagrada.

No entanto, uma questão intrigante se destaca: até que ponto parte das críticas ao remake se baseia em lembranças precisas da novela original? Especialistas apontam que muitos espectadores que se manifestam contra a nova versão podem estar influenciados pelo chamado efeito Mandela, um fenômeno psicológico que leva grupos inteiros de pessoas a compartilharem memórias falsas sobre um mesmo evento.

Efeito Mandela
O termo efeito Mandela foi criado para descrever situações em que um grande número de pessoas se lembra de um fato de maneira incorreta. Karina dos Santos Siqueira, psicóloga da Hapvida, explica que esse fenômeno é caracterizado por recordações falsas coletivas. “É uma característica da nossa memória que, embora ainda não tenha uma causa comprovada cientificamente, possui evidências sólidas. Ele ocorre quando um grupo de pessoas compartilha uma lembrança equivocada sobre um determinado evento, mesmo sem ter relação entre si”, afirma.

Entre os exemplos clássicos do efeito Mandela estão a falsa lembrança de que Nelson Mandela teria morrido na prisão nos anos 1980 – quando, na verdade, ele faleceu em 2013 – e a ilusão de que o personagem Pikachu, da franquia Pokémon, tem uma ponta preta na cauda, quando, na realidade, essa característica nunca existiu. Outro caso famoso é a sensação de que muitas pessoas estavam assistindo Dragon Ball Z no dia dos atentados ao World Trade Center, em 11 de setembro de 2001, quando há evidências de que o desenho sequer foi transmitido naquele dia.

O papel da memória e da nostalgia em críticas
De acordo com a psicóloga, a forma como as pessoas lembram-se de produtos culturais é fortemente influenciada pela nostalgia e pelo contexto em que elas vivem. “Aquela sensação de que tudo era melhor antes está muito ligada às experiências pessoais e emocionais da época. Se o presente de alguém é desafiador, ele tende a enxergar o passado de forma mais positiva”, explica Karina Siqueira.

Dessa forma, é possível que parte das pessoas que criticam o remake de Vale Tudo, que ainda nem foi ao ar, esteja se baseando em lembranças distorcidas ou romantizadas da novela original. “Nós sabemos que a memória é altamente manipulável. Se um grupo de amigos afirma com convicção que algo aconteceu de determinada maneira, tendemos a aceitar essa versão como verdadeira, mesmo que não corresponda à realidade”, aponta a especialista.

Redes sociais e o efeito manada
Outro fator que pode estar amplificando esse fenômeno são as redes sociais. Críticas negativas podem ser motivadas não apenas por memórias equivocadas, mas também pela necessidade de pertencimento a um grupo. “As redes sociais criaram um espaço onde as pessoas buscam validação e pertencimento. Muitas vezes, criticar se torna um ato de identidade, de se encaixar em uma comunidade que compartilha dessa opinião”, explica Karina.

Para a psicóloga, a questão das críticas ao remake pode estar ligada também a outro efeito. “Hoje, nas redes sociais, temos um efeito, quase que de manada, por meio do qual geram-se muitas críticas a quase tudo que é feito e produzido. Então, nem sempre essas pessoas têm a impressão de que já viram a série. Elas simplesmente querem criticar por criticar. Tem diversas pesquisas que mostram o quanto esse lado negativo, espalhar esse negativismo, espalhar essas críticas e essas agressões verbais podem tornar as pessoas pertencentes a um determinado grupo e expandirem a agressividade que têm internamente”, argumenta.

Isso também contribui para a propagação de fake news e teorias da conspiração. “Se uma informação é repetida diversas vezes e compartilhada em massa, as pessoas começam a acreditar nela, mesmo sem verificação dos fatos”, alerta a psicóloga. Esse tipo de comportamento reforça a resistência a novas versões de produtos culturais, como remakes de novelas e filmes.

Como evitar memórias falsas?
Para não cair no efeito Mandela, Karina dos Santos Siqueira recomenda sempre confrontar informações e buscar fontes confiáveis. “Sempre questione sua memória. Se você tem uma lembrança específica sobre algo, pesquise fontes seguras, converse com pessoas que viveram aquele momento e verifique evidências concretas, como registros em vídeo e textos originais”, aconselha.

“Com o avanço das plataformas digitais e a revisitação de clássicos da TV, é natural que obras como Vale Tudo despertem emoções intensas. No entanto, é essencial refletir se as críticas são fundamentadas em análises objetivas ou se as pessoas estão sendo influenciados por memórias distorcidas pelo tempo e pela nostalgia”, conclui a psicóloga.